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“Reforma Administrativa é o Apocalipse de Hugo Motta”. Artigo de Wellington Duarte
Proposta apresentada na Câmara reacende temor de desmonte do Estado, com críticas à influência empresarial e à ameaça de mudanças estruturais nas relações entre União, estados e municípios
Por Wellington Duarte /Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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O Brasil não é para amadores. Essa frase ilustra muito bem o quanto a chamada “elite” historicamente tenta se apoderar do aparelho público e transformá-lo num imenso “balcão de negócios”, já que num país em que as desigualdades sociais se destacam, o Setor Público é um agente fundamental para ações desenvolvimentistas e compensatórias, para mitigar os efeitos deletérios dessa desigualdade e, por conseguinte, se apresenta como um gigantesco espaço para o setor privado poder atuar e auferir lucros extraordinários.
Desde que a democracia, capenga e limitada é verdade, foi instalada no Brasil, em 1985, consolidada com a Constituição de 1988, o setor privado, mais especificamente os grandes grupos empresarias, tentam, em maior ou menor grau, retirar o termo cunhado pelo saudoso Ulysses Guimarães, “Constituição Cidadã”. O termo “reforma” passou a constar no dicionário dos liberais desde então e o governo de Fernando Henrique Cardoso começou esse processo, primeiro retirando das mãos do Estado, setores produtivos, alguns estratégicos e depois buscando remodelar o próprio modelo de gestão do Setor Público, introduzindo a Lei de Responsabilidade Fiscal em 2001 e em seguida a adoção do “tripé macroeconômico” como balizador das políticas econômicas governamentais daí por diante.
O interregno de 2003 a 2016 brecou um pouco esse processo, embora mesmo nos governos progressistas de Lula e Dilma, a lógica fiscalista se mantivesse presente e dificultasse medidas mais avançadas no que diz respeito a construir bases para um desenvolvimento econômico de tornasse o país mais justo. O governo Lula tentou conciliar o fiscalismo com políticas desenvolvimentistas e obteve, de fato, algum sucesso.
Mas em 2016, com o golpe parlamentar contra a presidenta Dilma Rousseff, o setor privado se viu novamente com as rédeas do poder e agiu rápido e certeiro, quanto aos seus objetivos. Ainda em 2016 aprovou o Teto dos Gastos, um torniquete fiscal que basicamente travou as ações desenvolvimentistas que porventura partissem da União; fez a reforma trabalhista e sindical em 2017, destruindo as finanças sindicais, com o objetivo de enfraquecer a resistência contra a desmontagem acelerada do aparelho estatal; fez aprovar a terceirização irrestrita, convalidada pelo STF em 2018; e finalmente a última reforma da Previdência, feita em novembro de 2019, construíram a base para futuras modificações que favorecessem novas reformas.
Bolsonaro, através do ministro Paulo Guedes, tentou, sem sucesso, aprovar a PEC 32, que era, de fato, a continuidade do desmonte final do Setor Público e que já tivera um prenúncio, em 2019, com o projeto “Future-se”, que propunha abrir espaço para a iniciativa privada dentro das universidades públicas, afrouxando os controles administrativos e financeiros destas. A PEC 32, apresentada no ano seguinte, trazia, portanto, toda a lógica do que vinha se fazendo desde 2016. Nem a PEC 32 e nem o “Future-se” avançaram, muito em função da resistência de vastos setores da sociedade civil mais organizada e pelo fato de que a própria base política do governo reacionário não se mostrou capaz de articular a aprovação da PEC 32, e ele foi para o limbo.
O retorno do governo Lula, em 2023, quase golpeado pelos bolsonaristas e reacionários na tentativa infame de Golpe, logo no início do mandato, recuperou, de maneira modesta e sob muita pressão, devido ao fato de que as eleições parlamentares deram um novo reforço aos setores reacionários, conservadores e fascistas, que empestearam a Câmara de Deputados e o Senado da República, as ações governamentais de natureza progressista. E esse novo ambiente conseguiu diminuir a ânsia dos grupos empresarias e dos neoliberais radicalizados em se apossar do Setor Público. Mas isso foi por pouco tempo.
Agora a PEC 32 “turbinada” ressurgiu através de uma manobra irresponsável do presidente Hugo Motta (Republicanos-PB) que, “assessorado” pelos setores empresariais interessados nessas fatias saborosas dos recursos ainda públicos, montou uma farsa chamada “Grupo de Trabalho”, passando por cima do Regimento da Câmara de Deputados, inaugurando o “trâmite fantasma”, onde o relator, o deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), que sequer poderia ser relator, tornou-se o “garoto propaganda” dos “novos tempos” anunciados para o serviço público, causa essa abraçada pelos grandes meios de comunicação.
Motta, um neófito na política parlamentar, foi achincalhado pela oposição bolsonarista e, desmoralizado, recorreu a uma tábua de salvação, talvez esperando um suporte para a sua futura reeleição e, para isso recorreu a algo que o lançasse de volta ao jogo político. E nada melhor do que o projeto de apropriação do Setor Público pelos grandes grupos empresariais, que mantém esse sonho vivo. Inventou um Grupo de Trabalho sobre Reforma Administrativa e entregou a tarefa de montar a farsa ao deputado Pedro Paulo, um defensor contumaz do desmonte dos serviços públicos.
E Pedro Paulo cumpriu sua tarefa. Tirou da manga uma proposição que se alicerça em 3 grandes propostas institucionais: uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC); um projeto de Lei Complementar, alcunhado de “Lei de Responsabilidade por Resultados”, um aforismo para destruição do pacto federativo; e um Projeto de Lei (PL) que institui o “Marco Legal da Administração Pública”, que redesenha a fórceps, a estrutura do Setor Público nas três esferas da Federação.
De uma tacada só Hugo Motta tenta fazer o que Temer e Bolsonaro não conseguiram fazer: destruir completamente o Setor Público. E isso precisa ser dito e repisado, já que a “reforma administrativa” não é “reforma”, já que ela propõe, na prática um novo pacto federativo, portanto é a ruptura com o atual modelo de relação entre a União, os estados e os municípios; e nem é “administrativa” porque, na verdade, não busca introduzir instrumentos de governança que melhore os serviços públicos, e sim uma completa deformação das relações trabalhistas nas três esferas da Federação.
Essa proposta, ao contrário do que se imagina, não emergiu do nada. A “reforma administrativa” de Bolsonaro, a PEC 32, renasceu com os anabolizantes trazidos pelos grupos empresarias que estão presentes nas fantasmagóricas “propostas” que Pedro Paulo alegou ter recebido e tal qual um escriba fornido por uma inteligência sagaz, como fez Rogério Marinho quando da reforma da previdência de 2019, conseguiu, em tempo recorde, produzir simplesmente uma reforma de todo o Estado brasileiro.
Para finalizar é necessário ressaltar que a proposta não afeta apenas os 11,38 milhões de trabalhadores e trabalhadoras das três esferas da Federação, mas milhões de brasileiros e brasileiras que dependem dos serviços públicos e que teriam que conviver com um Setor Público remontado sob a perspectiva empresarial e com seus agentes públicos completamente manietados por um sistema burocrático, centralizado na União, que afinal de contas, seria o “certificador” de políticas públicas de todos os municípios brasileiros e basta ver o tamanho desse país, para imaginar o caos administrativo que se seguiria quando da implementação desse estúpido sistema burocrático de controle, que pode funcionar dentro uma empresa, mas jamais num complexo social, onde as vicissitudes dos cidadãos, de norte a sul desse país, estão longe de serem homogêneas, e por isso mesmo precisam de políticas públicas das mais variadas e que muitas vezes precisam estar além da rigidez fiscal.
Destruir o Setor Público em nome da modernização deste é uma das muitas propostas que a elite empresarial rastaquera defende. Destruir as relações de trabalho nas unidades subnacionais em nome do aprimoramento da gestão, é uma completa deformação do conceito de governança, mesmo dentro dos padrões liberais.
Desde o Golpe de 2016, a presidência da Câmara de Deputados não tem se destacado pela postura republicana dos seus presidentes: Rodrigo Maia (2016-21) e Arthur Lira (2021-25) rebaixaram as relações republicanas a um nível tão rasteiro que a Câmara de Deputados é tratada como “inimiga do povo”, um epíteto perigoso que pode servir de discursos para aventureiros que busquem derrubar, como tentaram em janeiro de 2023, a frágil republica brasileira.
É preciso estar atento e forte.